quinta-feira, 23 de junho de 2011

Paixão e fé pelas ruas de toda cor

Ao acordar hoje neste belo e ensolarado feriado de Corpus Christi, lembrei-me dos tempos de Aparecida. Enfeitar as ruas para a procissão era quase um concurso. Mobilizava todos os moradores do bairro e cada um queria fazer de sua rua a mais bonita para ganhar um troféu que não existia.

Começávamos a nos juntar no final das frias madrugadas de inverno. Sim, havia inverno naquele tempo. A ansiedade despertava todos nós. O primeiro passo – previamente combinado – era que cada um cuidasse de levar um ingrediente para a produção daquela arte coletiva: pó de café, flores, pedras, areia e – muito – pó de serra. Este último cabia a mim, posto que meu pai era marceneiro e produzia muito pó de serra em variados tons.

À tarde lá vinha a procissão “se arrastando que nem cobra pelo chão” e, para minha tristeza, desmanchando a arte que todos nós nos esforçáramos para produzir. Mas o que fazer? Aquela arte era criada exatamente para aquele objetivo.

Ao me lembrar destas histórias nesta manhã, lembrei do Clube de Esquina 2, de Milton Nascimento. Uma das mais belas canções daquele álbum é Paixão e Fé, de Tavinho Moura e Fernando Brant. Busquei o vinil e deixei a agulha ferir os sulcos da minha memória. Repeti diversas vezes. Para quem quiser ouvir esta jóia, deixo o link e a letra primorosa destes mineiros que – como eu – devem ter enfeitado muitas ruas capistranas lá nas Minas Gerais.


Paixão e Fé (Tavinho Moura e Fernando Brant)

Já bate o sino, bate na catedral
E o som penetra todos os portais
A igreja está chamando seus fiéis
Para rezar por seu senhor
Para cantar a ressurreição

E sai o povo pelas ruas a cobrir
De areia e flores as pedras do chão
Nas varandas vejo as moças e os lençóis
Enquanto passa a procissão
Louvando as coisas da fé

Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia da barca dos homens

Já bate o sino, bate no coração
E o povo põe de lado a sua dor
Pelas ruas capistranas de toda cor
Esquece a sua paixão
Para viver a do Senhor

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Antares é aqui

A foto que ilustra a capa da Folha de São Paulo da edição desta quarta-feira me reportou ao livro Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Fiquei sabendo da greve ontem de manhã na CBN. O repórter da rádio falava direto do Cemitério de Vila Formosa e presenciou os grevistas dentro dos túmulos. Tentei imaginar a cena, que somente hoje vi no clic que o fotógrafo Moacyr Lopes Jr. fez para a Folha Press.

Os motoristas do serviço funerário também aderiram à greve e, com isso, o serviço de transporte dos corpos de hospitais e IML para os velórios foi afetado. As famílias reclamavam que os corpos de parentes não estavam sendo transportados e, consequentemente, não conseguiam iniciar o velório.

Enquanto o acordo do sindicato da categoria com a Prefeitura não sai: os grevistas querem 39,79% e a prefeitura oferece 0,01%, os 1.366 servidores ativos prometeram suspender a greve nesta quarta-feira, porém a negociação continua.

Ao acompanhar esse movimento – justo – lembrei-me da greve deflagrada na sexta-feira 13 de dezembro de 1963 pelos coveiros de Antares – cidade fictícia em que se passa o último e genial romance de Érico Veríssimo: Incidente em Antares.

Num resumo rápido: naquela sexta-feira, 13, morrem sete pessoas na cidade: Quitéria Campolargo (a matriarca da cidade), Barcelona (um sapateiro anarquista), Cícero Branco (influente advogado), João Paz (jovem pacifista que foi impiedosamente torturado pela polícia) o genial Pudim de Cachaça (bêbado envenenado pela mulher) Menandro Olinda (pianista que se suicidou) e Erotildes (uma prostituta).

Como os coveiros impedem o sepultamento, os caixões são deixados do lado de fora do cemitério. À noite, os mortos acordam e ficam indignados por ainda estarem insepultos. Os defuntos fazem uma sinistra procissão até o coreto da cidade onde passam a vasculhar a intimidade de parentes e amigos. Como já estão mesmo mortos, podem dizer o que quiserem sem temer represálias.

Bem, em Antares havia somente um cemitério. Em São Paulo, 22. Se essa greve pega mesmo, fico imaginando a quantidade de insepultos que passarão a circular pelo trânsito congestionado das ruas e avenidas de São Paulo com destino à Praça da Sé para reivindicarem seu sepultamento.

Se isso acontecer, aqueles fantasmas que habitam os meandros do nosso serviço público têm que tomar cuidado, pois vai que, como no romance de Veríssimo, os mortos que já estão mesmo mortos resolvam botar a boca no trombone e revelar de vez onde estão escondidos todos os fantasmas desse nosso Brasil/Antares.