Dirceu, fala alguma coisa! Falar o quê? Qualquer coisa!
Depois desta corda, desembestei a falar até Maurício Maciel me interromper. Está bom, você tem voz boa, vem fazer teatro com a gente no GUTU – Grupo União Teatral Umuarama. Este foi o teste que fiz num banco da Praça São Benedito em 1971 para a minha – supunha – futura e brilhante carreira de ator. O GUTU, dirigido por Maurício e Olavo, e o Grupo de Teatro do Colégio Américo Alves, dirigido por Fausto Padilha, eram os únicos em atividade em Aparecida naqueles distantes anos 70.
Participar do GUTU era um dos meus sonhos. Integrá-lo significava bem mais que o sonho de atuar. Tínhamos todos um comprometimento que extrapolava o proscênio. Para botar de pé nossas montagens, era necessário fazer cash, pois patrocínio era algo inexistente naquela época. Como o fazíamos? A principal fonte de renda era a barraca do GUTU na tradicional festa de São Benedito, que até hoje acontece na cidade no primeiro domingo após a Páscoa.
Durante uma semana o diretor, atores, técnicos e, claro, as namoradas se revezavam para vender cachorro quente, cerveja e refrigerante na barraca do GUTU. O resultado financeiro ia para o nosso caixa e significava também o respaldo para contratarmos peças com atores profissionais de São Paulo, que, vez ou outra, dava um lucrinho que engordava o caixa do grupo. Para se ter uma idéia, o maior sucesso da Capital que levamos para a cidade foi A Vinda do Messias, texto premiado de Timochenco Wehbi, com a soberba Berta Zemel, que ganhou com esta peça todos os prêmios de melhor atriz de 1971.
A minha estréia no GUTU aconteceu em O Boi e o Burro a Caminho de Belém, de Maria Clara Machado. A peça conta a história do nascimento do Menino Jesus, narrada por um Boi (Tadeu) e um Burro (Maurício), os dois astros do grupo. Eu fazia um reles pastor que tocava seu rebanho ao som de uma flauta, que ficava presa ao cinto do meu figurino. Numa das apresentações, a técnica soltou o play back um pouco antes da marcação da cena e este dublê de flautista correu desesperado para pegar seu instrumento e levá-lo à boca, para diversão da plateia, muitos compassos depois.
A peça seguinte foi produzida e dirigida pelo saudoso padre Marino Plentz. A congregação dos padres redentoristas, que administra as igrejas do santuário de Aparecida, bancou A Paixão de Cristo, montada com pompa, circunstância e grande elenco para ser exibida em três sessões durante a Semana Santa no Cine Aparecida.
Então, pela primeira vez o GUTU não precisou recorrer a seu caixa para esta produzir esta mega montagem. E, também, foi a primeira vez que seu elenco teve que ser acrescido por um sem número de atores e figurantes, posto que a saga da paixão de Cristo requeria muitos atores para interpretar os inúmeros personagens que todos conhecemos: Cristo, Maria, Maria Magdalena, Pedro, João, Judas, Pilatos, Barrabás, Caifaz, Dimas (o bom ladrão), Gestas (o mau ladrão) e Longinus, entre outros. Este último o centurião romano que fincou a lança em Cristo em sua agonia final na cruz para certificar de sua morte.
Qual o meu personagem? Ele mesmo: Longinus. Até hoje não imagino porque me escalaram para viver o centurião romano, afinal, quando os espectadores olhavam para o meu físico desde sempre “pele e osso e simplesmente quase sem recheio” não sabiam quem era mais magro: eu ou a lança. Aliás, meu figurino era o máximo: aquela saia de centurião romano, capa púrpura, capacete, espada à cintura, sandália com apliques que imitavam uma bota e a indefectível lança empunhada solenemente à direita do meu corpo, como nas histórias do Asterix.
O primeiro ensaio geral quase parou quando o ator que interpretava o Judas – escalado devido a sua "beleza" e sem nenhuma experiência anterior em cena – soltou a seguinte pérola: Judas entra, olha a platéia e sai. Evidente que ele não tinha mínima noção do que significava a rubrica de um texto teatral, mesmo que estivesse grafado entre parênteses. Entrou em cena, deu a fala e saiu para a coxia. O ensaio parou. O elenco caiu na gargalhada e foi difícil para o Padre Marino retomar o pulso do ensaio.
No dia da estréia paguei o maior mico da minha vida. Sem eu saber que haviam combinado antes, o elenco decidiu me pregar uma peça. Ficou estabelecido que todos deveriam acompanhar a procissão da semana santa a caráter. Como a procissão passava na porta da minha casa, decidi: na hora em que ela chegar eu entro. E foi o que fiz. Lá pelas cinco da tarde lá vinha a procissão “se arrastando que nem cobra pelo chão”. Aquela cantoria e reza toda e eu Longinus entrei sorrateiramente, procurando pelos meus companheiros de elenco.
A procissão foi me arrastando e nada de eu achar os meus pares “fantasiados” para a ocasião. Todo mundo me olhava esquisito e lá ia eu com a minha espada e lança querendo achar um buraco para me enfiar. E nada do buraco. A procissão prosseguia com o povo cantando e rezando... e nada do elenco. Quando entramos na rua do Cine Aparecida lá estavam os amigos do GUTU, todos com seus figurinos debaixo do braço, me apontando e morrendo de rir daquele desengonçado centurião romano. Saí da procissão e entrei em cena. Ao final, depois do grande sucesso da estreia, voltei do teatro para casa de Longinus.
A paixão de Cristo segundo Padre Marino continua noutro post, pois este centurião ainda tem muitas histórias dos bastidores para contar.