Pelo décimo dia consecutivo, o Farol de San Felician amanheceu totalmente coberto por densas nuvens e sem nenhum sintoma que indicasse que o tempo bom retornaria. Assim, permaneceu até por volta do meio-dia, quando as águas resolveram se precipitar de vez sobre o arquipélago. Ruiz Sebastian começava a ficar preocupado com a sua situação solitária de faroleiro, pois praticamente já havia dez dias que não pegava no sono nem recebia a visita do velho Piero que, pelo menos, de dois em dois dias, vinha lhe trazer as notícias do povoado.
A madrugada do dia dezenove foi de uma expectativa como há muito Ruiz Sebastian não vivia. Como sempre, entre os dias dezesseis e dezessete, o cargueiro Buena Hora fazia a rota pelo farol a caminho do Sul, levando a carga preciosa de que tanto necessitavam os povoados além de Santa Margarida de la Concepción. O atraso do Buena Hora não era natural, pois, em vinte anos o cargueiro nunca atrasara mais que um dia. E a tempestade e a madrugada trouxeram, além de muitos objetos nas pedras, pensamentos que Ruiz não gostava de pensar.
Ouviu muitas sirenes desconhecidas que lhe soavam como gritos desesperados na noite escura, mas a sirene que mais queria ouvir - a do velho Buena Hora com que o capitão Perez costumava saudá-lo nas noites serenas - não ouviu. As horas demoraram mais para passar na madrugada do dia dezenove e tudo o que Ruiz pediu a Netuno foi que levasse a tempestade para alto mar e trouxesse as noites de calmaria quando ele gostava de singrar todos os mares da sua imaginação.
Dos quase vinte e dois anos que estava no comando do Farol de San Felician, por conta de uma grande desilusão amorosa, Ruiz conseguiu, a exemplo das tartarugas, desenvolver uma dura crosta para proteger a sua solidão. Nem o velho Piero, o único a gozar de sua intimidade, não conseguiu jamais rompê-la. Os assuntos que os dois conversavam diziam respeito às banalidades do povoado, que Ruiz visitava de quinze em quinze dias para se abastecer e rezar na capela de San Sebastian para que o bom tempo guiasse os viajantes. Na cidade, as lendas já corriam soltas sobre o "espanhol do farol", que não conseguira amarrar nenhuma mulher que lhe trouxesse consolo nas noites solitárias no farol.
A tarde já estava caminhando para a noite quando o céu foi se abrindo lentamente. Ruiz correu para a torre e de lá pode vislumbrar o horizonte. Amanhã o tempo abre. Pensou. Afinal, ninguém melhor do que ele para diagnosticar as mazelas daquele mar e as sutilezas da natureza tropical. Conhecia esse mar como a palma de sua mão de marinheiro frustrado, que tinha viajado por tantos mares e que tinha muitas histórias de outras tempestades mais ferozes para contar... Mas esta é outra história pra outra hora. Quem sabe eu conto, em una buena hora.
Da série: lá no fundo do meu baú par o saudoso amigo Pedro Medeiros, que nos deixou exatamente num 9 de julho, dia do meu aniversário.
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