quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Toreador

Ontem de manhã tentei ler o jornal no ônibus. Não consegui. Minha leitura e, talvez, a dos demais passageiros, foi interrompida pelo toque (daqueles bem escandalosos) do celular de uma passageira. Até aí tudo bem. Todo mundo ouve e imagina que ela irá atender rapidinho e falar com seu interlocutor bem baixinho, para que ninguém fique sabendo o teor da conversa. Que nada! Acho que aquela passageira ignorou o seu interlocutor e desandou a falar ALTOOOOO e sem parar. Contava o encontro na balada na noite anterior nos mínimos detalhes: do quanto o “cara” era um gato; até que hora eles ficaram juntos; que já haviam marcado para a próxima sexta; blá blá blá; blá blá blá; blá blá blá.

A tortura demorou até o meu ponto no metrô onde, finalmente, pude ler as notícias do dia. Uma delas dizia que a Anatel vai acrescentar um nono dígito nos números de celular de São Paulo. O objetivo da medida é resolver o problema de escassez de numeração em São Paulo. Segundo a agência, com isso a capacidade de numeração poderá chegar a 370 milhões de linhas. Tudo isso? Arghhhh! Imaginei então um ônibus de garotas como aquela comentando suas aventuras e eu tentando ler o meu jornal.

Lembro de um almoço na La Baguette com o meu amigo Pedro D´Alessio em 1993. De repente entrou um cara bem vestido foi até nossa mesa e ofereceu o “negócio”. Abriu uma maleta e lá estava ele: o celular. Nossos olhos brilharam quando nos deparamos com aqueles lindos e enormes celulares de primeira geração à nossa frente. O aparelho e duas baterias custavam uma fortuna, exceto a linha, que teria de ser outro investimento. Para mim era o sonho do celular próprio. Eu teria que juntar minha poupança, resgatar o fundo de garantia e financiar o restante em dez anos. D´Alessio não resistiu e fechou negócio.

Na mesma época fui ver o filme O Jogador, de Robert Altman. Um dos coadjuvantes do filme era... o celular. Pela primeira vez no cinema ele apareceu numa cena em que o personagem de Tim Robbins fica circundando a casa da personagem de Greta Scacchi ao celular. Um voyeurismo excitante. Ele a vê e segue seus passos e expressões. Acho que até então, ninguém havia imaginado isso ser possível.

Histórias engraçadas ou constrangimentos ao celular todo mundo tem uma para contar. Eu tenho duas. Uma delas eu testemunhei. No segundo movimento de uma peça regida por John Neschling na Sala São Paulo, quando a música está ainda engatinhando, o celular toca dentro de uma bolsa enorme de uma perua. Imediatamente, com um gesto rápido, Neschling interrompe o concerto e vira-se de seu pódio para aquela bolsa. Não diz nada. Apenas fuzila a perua com o olhar. O maridão roxo, a plateia naquele burburinho e a perua desesperada atrás do botãozinho que desliga o aparelho. Depois de intermináveis minutos cheios de segundos dentro, o maestro volta para a orquestra e reinicia o movimento... da capo.

A outra me contaram e também aconteceu numa orquestra, a do Teatro Municipal de Sâo Paulo. Essa foi pior. Um dos contrabaixistas chegou atrasado. O maestro já estava pronto para iniciar o concerto e ele entra esbaforido, toma seu lugar, coloca sua bolsa ao pé daquele instrumento enorme e recebe um olhar fustigante do maestro. Começa o concerto e lá pelas tantas o celular do músico lá embaixo, dentro da bolsa, resolve fazer um solo: O Toreador, a mais famosa ária de Carmem, de Bizet. Imagina o desespero do músico que estava lá em cima no contrabaixo, tendo que se desvencilhar do instrumento, do arco, abaixar, abrir a bolsa, encontrar o celular e desligá-lo. Ufa, fiquei cansado.   

Na semana passada liguei para o meu amigo Pedro D´Alessio. Oi Pedro, tudo certo! Quanto tempo! Tentei ligar na sua casa. Você está em São Paulo? Não, Dirceu, estou em Montevidéu. Uruguai? Como eu poderia imaginar naquele almoço de 1993 que aquele aparelhinho romperia fronteiras e que de nada adiantaria tentarmos nos esconder, o Toreador sempre nos encontra.

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