sábado, 18 de dezembro de 2010

Se eu me chamasse Raimundo...

Ensaio de Se eu me Chamasse Raimundo em 1986
“De tudo ficou um pouco, do meu medo do teu asco, dos gritos gagos, da rosa ficou um pouco...” Assim começava o espetáculo Se eu me chamasse Raimundo, que montamos em 1986. Em seguida, a cantora Rosa Maria passeava pelo cenário que reproduzia uma cidadezinha de Minas cantando: “Ó Deus salve o oratório; Ó Deus salve o oratório, onde Deus fez a morada...”

A direção era de Herton Roitman. O roteiro era meu e partia do princípio “uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração. Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.” A música de Milton Nascimento ponteava o espetáculo.

Após elaborar o roteiro, criar o Grupo Luz e chamar Herton Roitman para dirigir, eu tinha a missão quase impossível para finalmente levar à cena o espetáculo: conseguir a autorização do poeta Carlos Drummond de Andrade para poder estrear. Consegui seu telefone. Liguei.

- É da casa de Carlos Drummond de Andrade?
- Sim.
- Gostaria de falar com ele!
- É ele!

Foram os 15 minutos mais longos da minha vida. À voz de Drummond, suei frio. Quase gaguejando, falei do meu propósito de montar um espetáculo com poemas dele. Ele retrucou dizendo que a poesia estava no papel e lá é que deveria morar. Em princípio, era contra o que eu estava tentando fazer. Mas, desandei a falar e convenci, vejam só: eu convenci o poeta Carlos Drumond de Andrade de que ele deveria liberar a montagem de Se eu me chamasse Raimundo para correr pelas escolas de São Paulo em 1986. Claro que ele pediu que eu enviasse o roteiro para que ele pudesse avaliar.

Duas semanas depois liguei novamente. Drummond aprovou o roteiro e o Grupo Luz pode estrear a minha versão de sua poesia, embalada pela música do Milton Nascimento. Fizemos uma temporada de três meses no Assobradado do TBC e, em seguida, percorremos as escolas da capital até o final de 1986.

No início de 87, encotrei minha amiga Neide Rezende, professora de literatura da Faculdade Senador Fláquer, em Santo André. Falei sobre o espetáculo e combinamos de eu fazer um recital das poesias de Drummond para seus alunos sozinho, pois o Grupo Luz já havia sido dissolvido. Combinamos uns dois meses antes. Nesta época, eu era gerente do Pirandello e minha folga era às segundas-feiras. O tempo passou e o recital para os alunos seria na sexta-feira, 21 de agosto de 1987.

Eu trabalhava de madrugada e não conseguia dormir cedo como os normais mortais, pois meu corpo havia se acostumado àquele novo horário. No dia 17, cheguei em casa lá pelas 10 da noite e lembrei que na sexta seguinte faria o recital. O que precisava fazer? Repassar os poemas e cristalizá-los para que nada desse errado na sexta. O que fiz? Uma garrafa térmica de café. Na cozinha da minha casa onde morava na época – na Rua Morato Coelho, naqueles predinhos antigos de três andares entre as Ruas Artur de Azevedo e Teodoro Sampaio – repassei o excerto daquele espetáculo do Grupo Luz. Eu havia gravado uma trilha sonora que faria fundo para a minha performance.

Devo ter começado por volta da meia-noite. Liguei o gravador e fui sobrepondo, melimetricamente, a minha voz sobre a trilha sonora. Naquela madrugada do dia 17 de agosto eu passei e repassei todos os poemas do meu roteiro. Lá pelas tantas, fui dormir exausto e feliz com tanta poesia na minha cabeça.

Acordei por volta do meio-dia, tomei o meu café e recebi um telefonema. Oi Dirceu...  Você viu quem morreu ontem? Não. Quem? O Drummond. Emudeci. Eu não havia assistido ao Jornal Nacional daquela segunda-feira, 17 de agosto, que, soube depois, havia feito uma bonita homenagem ao poeta.

Resumo: enquanto o poeta era velado no Rio de Janeiro, eu declamava seus versos na cozinha da minha casa. Confesso aqui que nunca disse tão bem os versos do nosso Drummond. Na sexta fiz o meu recital para os alunos da amiga Neide. Comecei dizendo que nunca imaginamos que aquele recital seria uma homenagem póstuma. E não foi. Depois do intróito, a noite foi pura emoção. Os alunos mergulharam comigo no universo drummoniano e só quem estava lá pode testemunhar o quanto aquela noite foi especial para todo mundo.

Para terminar, resta dizer o último verso do poeta com que terminei o meu recital:

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Esta é uma das muitas lições que aprendi nesta vida com a poesia: "As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.

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